sexta-feira, abril 09, 2004

Carandiru

Assisti hoje a mais um notável (mas também de uma violência a tocar o insuportável..) filme brasileiro - Carandiru.
Realizado por Hector Babenco, inspirado no best-seller de Drauzio Varella, retrata o dia-a-dia de uma das maiores prisões de São Paulo.

Bom cinema, bem dirigido, bons actores, tremendamente violento, chocante até se levarmos em linha de conta o detalhe de ser baseado em factos verídicos.

Podemos acreditar que o massacre perpetrado pela Polícia de Choque brasileira é susceptível de ocorrer num Estado de direito democrático??

segunda-feira, abril 05, 2004

Livros

Este blog também serve para isto - apontar os livros (e outras coisas mais) que gostava de ter.

Por hoje, ficam estas três referências:

- DOUGHERTY, JAMES E., PFALTZGRAFF, ROBERT L., Relações Internacionais - as teorias em confronto, Gradiva

- KISSINGER, HENRY, Precisará a América de uma política externa?, Gradiva

- SARAMAGO, JOSÉ, Ensaio sobre a lucidez, Editorial Caminho.

domingo, abril 04, 2004

Negociar ou não negociar - eis a questão?

Mário Soares, «habituado a pensar pela própria cabeça (...) muitas vezes contra a corrente» (n.d.r.: mas sempre do lado da razão, muitas vezes antes do tempo, qual visionário... ), sentiu-se na obrigação de dar explicações públicas sobre as interpretações que sobre as suas opiniões foram feitas, no âmbito do combate ao terrorismo global.

Bom, a atitude é de registar. Ainda que vindo duma pessoa que estamos habituados a ver discursar do alto das suas profundas sapiência e experiência, seja quase inédito. O habitual nas intervenções de Mário Soares (chamemos-lhe de ora em diante MS, porque tenho um pressentimento que voltarei a este assunto frequentes vezes..) é ele fazê-las, e depois estas circularem (ganhando vida, independente do criador) como profecias, dignas de admiração, de contemplação até, mas que quase fazem doutrina.

Nos assuntos da agitada e rica vida público-política portuguesa há um antes-de-MS-falar e um depois.

Daí alguma surpresa pela necessidade de dar explicações. Ou não foi claro na primeira intervenção ou excedeu-se e precisou de clarificar...

O artigo foi publicado no 'Expresso' de 27 de Março de 2004, sob o título 'Variações sobre o terrorismo'..
Começa mal, mas li ansiosamente a 1ª frase, esperando encontrar qualque coisado género: «Caros cidadãos, confesso: variei de vez.»

Mas não. MS assina um interessante artigo, incidindo sobre alguns aspectos relevantes sobre o fenómeno do terrorismo global.
Descontando os 'clichés' e as generalidades, MS afirma que

(o terrorismo) «requer, daqueles que o combatem, conhecimento, cruzando as informações vindas, sobretudo do mundo islâmico e investigação, no terreno, e junto das escolas corânicas (...). Requer atenção, observação minuciosa, audição das pessoas, diálogo, uma diplomacia advertida (whatever that means...), actuante e serviços secretos, no sentido de inteligênica (há outro?), eficazes e cujos relatórios não sejam depois distorcidos pela vontade dos políticos.» (pois, a má vontade dos políticos!)

«O que é Al-Qaeda?», pergunta.
Responde apenas: «É preciso conhecer a Al-Qaeda para a combatermos com eficácia. (...) Falemos com os teólogos, os intelectuais, os politólogos, os cientistas islâmicos, que os têm da melhor qualidade.(...) A negociação - princípio da admissão de negociar - começa aí.»

Mas repare-se, «parte-se de uma posição de força».
É aqui que começa o problema - o que se entende por negociar.
Bom, do ponto de vista de um cientista social internacionalista, negociar é

o processo através do qual os actores macropolíticos (importante esta dimensão, pois reconhece-se legitimidade política para projectar poder a este nível macro) interagem de modo a obter um conjunto de efeitos que apenas, ou mais efectivamente, podem ser atingidos através de acordo comum. Se um actor tem a capacidade e a vontade de produzir um resultado sozinho, então não é necessária a negociação. Posto isto, negociar é um reconhecimento tácito pelas partes da complementaridade dos seus interesses.» (in EVANS, Graham; NEWHAM, Jeffrey, Penguin Dictionary of International Relations, Penguin Reference, 1998, pp. 356 - 357).

Vamos por partes.
1. Como resulta do exposto, quem está numa posição de força, não negoceia por princípio. Impõe, pela força, os efeitos que deseja ver produzidos no ambiente. É o que faz a Administração George W. Bush. Portanto, MS aparece aqui num irónico paralelismo de argumentos com o seu (actual) ódio de estimação.
2. Considerar, seguindo esta linha de raciocínio, que se está dita posição de força, conduz a que se ignore a natureza desta nova ameaça. Daí tem resultado que para um fenómeno novo (terrorismo global) se insista em dar respostas pela via tradicional (guerras/intervenções militares contra Estados). Aí estamos de acordo com MS - é preciso conhecer o inimigo.
3. Mas aquilo a que MS se refere não é negociação. É outra coisa qualquer, mas não negociação. Talvez seja intelligence, talvez seja estratégia (conhecer o inimigo, identificar os seus objectivos, o risco, a ameaça, as capacidades opostas, os recursos próprios).
4. Se fosse negociação, teria de haver um mínimo denominador comum, a tal 'complementaridade de interesses.' Ora, um dos interesses dos terroristas é precisamente a destruição dos alicerces das nossas sociedades. É matar o maior número de pessoas possível, apenas para gerar o terror e espalhar o pânico. Os terroristas não têm outra agenda que não seja enfraquecer (soa aqui a eufemismo..) o modelo de sociedade e de organização política das democracias.

É preciso destrinçar aquilo que está em jogo. Uma coisa é o citado ódio de estimação de MS por Bush, que é capaz até de lhe turvar o raciocínio.
Outra é a chamada de atenção que deve ser feita, colhendo aquilo que o recente exemplo da democracia espanhola teve de melhor, para o envolvimento de todos os actores (governos, media, sociedade civil) na compreensão do fenómeno do terrorismo e no estudo da forma mais eficaz de o combater. A visão tem de ser de médio/longo prazo.

Se a intervenção do Dr. Soares tiver tido o condão de provocar esta chamada de atenção, é muitíssimo bem-vinda.